Dá tempo de mudar?

Edição 72

Enquanto o venture capital segue caminhos batidos, a inovação passa longe.

Mais: o maior IPO do ano e carne feita de insetos.

Inovação sem risco?

O venture capital já foi reverenciado como um dos responsáveis pela inovação e progresso da humanidade – mas faz algum tempo que negócios e modelos disruptivos passam longe das prioridades de investimento dos VCs.

Literalmente traduzido como capital de risco, o venture capital, de fato, impulsionava a inovação e financiava novos caminhos para empreendedores que tinham a audácia de ir contra o status quo ou criar caminhos completamente novos – e mais curtos – que aqueles traçados por empresas tradicionais.

Mas a essência do venture capital mudou.

Os investimentos não são mais de tanto risco, a cartilha dos empreendedores pré-aprovados pelos fundos tem mais a ver com a faculdade que o founder frequentou do que com a inovação do negócio e, por último, os gestores passaram a mirar retornos certeiros – e de preferência rápidos, em torno dos 5 anos, para satisfazer os investidores e garantir a taxa de performance para os administradores do fundo.

Conforme conta Alexandre Nascimento, empreendedor e pesquisador em Inteligência Artificial pela Singularity University: 

“Trata-se de um clube fechado com uma correlação altíssima, onde há uma tendência de um seguir o outro ao invés de apostar em algo que seja realmente diferente. Como a essência de inovar é fazer algo de um jeito diferente, talvez o venture capital esteja se tornando incompatível com a inovação real, infelizmente.”

Alexandre continua esclarecendo que embora o venture capital tenha sido criado para financiar inovações a médio e curto prazo, o mais comum hoje é que busquem por inovações incrementais. “E, melhor ainda, que sejam daquelas que rapidamente tenham uma confirmação, como uma estratégia de ‘de-risking’”.

Clubinho restrito e conflito de interesse

Para Alexandre, os investimentos nem sempre são escolhidos pelo mérito do negócio – há, frequentemente, questões de relacionamento envolvidas. Não é incomum que a escolha de uma startup seja motivada pelo acesso do empreendedor a novos investidores qualificados, de rodas exclusivas antes inacessíveis ao fundo.

Há também um conflito de interesse por buscar investir em negócios de retorno rápido, em uma busca por mostrar resultado em pouco tempo e levantar novos fundos – deixando de lado ideias realmente disruptivas.

Glaucia Guarcello, sócia-líder de Inovação e Ventures da Deloitte Brasil, esclarece:

“O capital de um fundo VC deve ser paciente, já que é preciso um longo prazo para que uma solução disruptiva se torne viável e escalável. Além disso, o risco de insucesso é enorme. Por isso, penso que o investidor brasileiro ainda não está preparado para o venture em si – que é experimentar, testar e aceitar a falha ou o erro. Na ânsia de ter um resultado rápido, o que tem acontecido é a elevação do risco de inviabilizar uma inovação ou ‘matar uma boa ideia’ porque ela não trouxe resultados de curto prazo.”

Alexandre completa, deixando claro que existem exceções: 

“O modelo de venture capital precisa ser redesenhado, pois há um enorme conflito de interesses e alinhamento entre os gestores do fundo, os sócios e os empreendedores que realmente buscam inovações disruptivas. Disruptar uma indústria pode levar mais de duas décadas [veja a Amazon, por exemplo], e não encontramos esse tipo de apetite em ventures capital para bancar uma aventura dessas”.

O outro lado da moeda

Esses argumentos fazem sentido quando se pensa do lado do empreendedor inovador que não encontrou financiamento para sua startup, mas, especialmente no Brasil, é importante lembrar que essa classe de ativos compete com juros reais altos em outros tipos de investimento.

Mesmo os EUA, com juros historicamente baixos, está vivendo um período de juros mais elevados e os gestores de fundo de venture capital estão precisando correr atrás de ativos mais seguros e com retornos maiores.

Essa busca por inovação pura ou lucro rápido não precisa ser mutuamente exclusiva. É preciso encontrar o equilíbrio para apoiar a inovação ao mesmo tempo que haja geração de retorno para os investidores.

Invariavelmente, a maioria das pessoas que investe em startups através de fundos de venture capital só irá continuar investindo no longo prazo caso seu portfólio renda minimamente mais que outros investimentos mais seguros.

Essa corrida entre retorno rápido versus negócios que criam o novo só gerará valor para a humanidade se encontrarmos o ponto ideal para alinhar os interesses de investidores e empreendedores – gerando valor para a sociedade.

O maior IPO do ano

O Softbank está rindo à toa. O conglomerado japonês está por trás do maior IPO do ano no mundo.

A Arm foi uma aposta de longo prazo da gestora, a empresa foi fundada em 1990 na forma de uma joint venture entre Acorn, VLSI e Apple e chegou a ser listada na Bolsa de Valores de Londres e na Nasdaq de 1998 a 2016 – naquele ano, o Softbank adquiriu a totalidade da empresa por US$ 32 bilhões.

Em 2020, o SoftBank tentou, mas não conseguiu, vender a Arm para a Nvidia por US$ 40 bilhões. Parece que foi um bom negócio.

Com o preço definido para o IPO que ocorreu ontem, em US$ 51 dólares a ação, a Arm foi avaliada inicialmente em cerca de US$ 54,5 bilhões, de acordo com cálculos da Bloomberg News. Pouco tempo após a abertura das negociações, as ações chegaram a ser negociadas por US$ 59 dólares, empurrando o valuation da empresa para quase US$ 60 bi.

A jornada até o IPO

Com a tentativa do negócio com a Nvidia irritando alguns dos maiores clientes da Arm e a subsequente desistência da transação, a Arm começou a se preparar para abrir o capital na Bolsa de Valores. No início, a empresa pretendia ser avaliada entre US$ 60 e 70 bilhões.

A Arm tinha objetivo de levantar US$ 8 a 10 bilhões na estreia na bolsa, mas a meta foi reduzida porque o Softbank decidiu comprar os 25% de participação que era detido pelo Vision Fund (fundo de investimento do próprio Softbank), avaliando a empresa em US$ 64 bilhões. 

Ou seja: o Softbank “perdeu” dinheiro para dar mais valorização para os investidores do Vision Fund – também pudera: o fundo sofreu com o inverno das startups e a queda de valuations de companhias como WeWork e Uber.

Em torno de 10% das ações disponibilizadas para o IPO foram reservadas para investidores que são alguns dos maiores clientes da Arm: Intel, Apple, Nvidia, Samsung e TSMC.

O IPO em questão é o maior do mundo este ano, já que supera a listagem de US$ 4,37 bilhões feita pela Kenvue, uma subsidiária da Johnson & Johnson voltada à saúde do consumidor.

Esse movimento pode ser o pontapé inicial para uma onda de IPOs de dezenas de empresas de tecnologia e de outros segmentos que paralisaram os planos de abertura de capital nos EUA durante o período de retração nas cotações – o mais profundo desde a crise financeira de 2009.

Um modelo de negócio único

A Arm ganha com seus processadores sendo utilizados pelas maiores companhias do mundo. Mas ela não produz nenhum deles.

O modelo de negócio da empresa é baseado no licenciamento de patentes e tecnologia, um conjunto de instruções, patenteado, que permite que as empresas comprem as instruções para a base do layout de um chip e personalizem para suas necessidades.

A Apple, por exemplo, começou utilizando processadores próprios, desenvolvidos com base na tecnologia da Arm, em seus iPhones. Expandiu para os iPads, lançou o Apple Watch e, em 2020, começou a transição de todos os seus computadores para processadores baseados na tecnologia.

Praticamente todos os dispositivos móveis no mundo utilizam um processador baseado em Arm. Diversos veículos, eletrodomésticos e outros devices inteligentes, também.

Cada vez que um desses produtos é vendido com tecnologia da Arm embarcada, a empresa ganha uma porcentagem do valor. Ou seja: é um negócio extremamente eficiente, sem fábricas ou qualquer demanda de estruturas físicas gigantes – e caras – para fabricação de chips.

Recentemente, com o crescimento das aplicações de inteligência artificial, os processadores baseados em Arm ficaram ainda mais atraentes. Foi com base neles que empresas como a Nvidia desenvolveram alguns dos processadores mais adequados para esse tipo de tarefa – e que fizeram seu valor de mercado explodir.

Com tanta relevância intrínseca na tecnologia desenvolvida pela Arm não é de se espantar que esse seja um dos IPOs mais badalados dos últimos tempos. Ninguém quer ficar de fora da festa e ver a próxima Intel crescer sem ter um pedaço dela para chamar de seu.

Depois do plant-based, vem aí o insect-based

A carne de plantas já ganhou espaço nas gôndolas dos mercados e coração dos consumidores que desejam reduzir a dependência de proteína animal. Agora, uma nova tendência foi apontada por um levantamento do AgFunder, um dos principais fundos de venture capital do ecossistema agroalimentar global: startups que desenvolvem refeições preparadas com proteínas de insetos.

Depois de passado o hype das startups de agricultura indoor, que enfrentam o período de “vale da desilusão” no caminho da inovação, analistas agora indicam que boa parte do capital que ia para esses negócios está sendo direcionado para a aquicultura e produção de ingredientes à base de besouros.

Desde o início do ano, os dois segmentos ficaram com 60% dos investimentos conquistados no segmento no mundo, totalizando cerca de US$ 370 milhões dos US$ 626 milhões levantados em 48 negócios.

Houve uma guinada total em relação ao comportamento de 2022, quando as startups de agricultura indoor capturavam 60% das transações de venture capital. A mudança é motivada pela intensificação dos impactos das alterações climáticas no mundo, aumentando o valor percebido nesses novos sistemas agrícolas.

Exemplo dessa nova tendência, e a maior operação do setor em 2023, foi o aporte de US$ 175 milhões na Ÿnsect SAS, uma startup francesa. Fundada em Paris em 2011, o negócio já levantou US$ 625 milhões de mais de 30 investidores. De fundos profissionais como Astanor, Upfront, até o ator Robert Downey Jr.

O interesse na startup não é novidade: em 2020 a Ÿnsect conquistou o maior investimento em uma agtech fora dos EUA até hoje – US$ 372 milhões em sua série C.

Voando como inseto

A startup já tem unidades na França, Holanda e Estados Unidos e deve chegar ao México em breve. Hoje, a Ÿnsect já detém cerca de 370 patentes que representam metade de todas as inovações registradas no mundo para produção de proteínas a partir de insetos.

Em especial, o foco da agtech é o desenvolvimento de alimentos com base no besouro larva-da-farinha. No início, o objetivo era produzir ração animal, já que a comida à base de insetos é considerada uma forma de alimentar os rebanhos e criações de aves e peixes de forma mais sustentável do que a tradicional farinha de peixe.

Para cada tonelada de proteína Ÿnsect, a empresa economiza cinco toneladas de animais aquáticos.

Com os aportes recebidos nos últimos anos e os avanços científicos, a startup mudou sua estratégia e hoje mira também na alimentação humana e em rações para pets. 

Um dos exemplos desse avanço é o sistema Axiom YNS­­_Mol1, o primeiro chip de genotipagem desenvolvido pela startup. A ferramenta permite a seleção das linhagens de larvas do inseto mais adequadas à alimentação animal e humana.

Em ambos os casos, depois de processados, os besouros se transformam em um pó rico em proteínas, minerais, fibras e ácidos graxos. A equipe de P&D da startup já apresentou, em caráter experimental, um hambúrguer à base de besouro – um exemplo de onde a inovação e criatividade humana pode chegar.

Sustentabilidade em foco

A produção da proteína da larva-da-farinha usa 90% menos terra e 50% menos água do que a fabricação da mesma quantidade do nutriente de origem animal – tudo isso alcançando um nível 60% reduzido de colesterol total e tão nutritiva quanto a proteína do soro de leite.

O circuito de produção é fechado e funciona em loop. A produção raramente exige a introdução de novos insetos. Com 95% da larva-da-farinha sendo processada para obtenção do produto final e 5% destinada à reprodução.

Vale destacar que o besouro em questão se tornou, em janeiro de 2021, o primeiro inseto autorizado para consumo humano pela Autoridade Europeia para Segurança Alimentar. O pó da larva é usado como ingrediente no preparo de bolos, biscoitos, pães e macarrão.

Agora, o desafio deve ser fazer com que consumidores encarem um prato de macarrão, um pacote de biscoito ou um bolo feito de larvas. Já dá para saber que pelo menos nutritivo e sustentável o produto deve ser.

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